POR DENTRO DA LEAL MOREIRA

Mãos que movem o mundo

A primeira frase de "A Câmara Clara", último e mais famoso ensaio de Roland Barthes (1915-1980), diz o seguinte: "Um dia, há muito tempo, dei com uma fotografia do último irmão de Napoleão, Jerônimo (1852). Eu me disse então, com um espanto que jamais pude reduzir: 'Vejo os olhos que viram o Imperador'".

Corte para os registros feitos pelas lentes de Naiara Jinknss, uma paraense afro-indígena de 28 anos que escolheu o Ver-o-Peso como segundo lar e campo de estudo/produção. Fica fácil ceder à tentação de reconstruir as palavras do semiólogo francês e afirmar, com igual espanto: "Vejo os olhos que viram as pessoas comuns".

Naiara - ou Nay, como é conhecida pelos mais próximos - construiu, apesar da curta carreira, um portfólio sólido o suficiente para situá-la entre os melhores nomes da nova geração de fotógrafos da Amazônia. Seus registros, feitos em câmeras analógicas, digitais e telefones celulares, constituem não só um relato nervoso do cotidiano na maior feira livre da América Latina, mas também servem - por que não? - como um aglomerado de polaróides da identidade local.

Afinal, como negar nestes corpos, quase todos negros, esturricados pelo sol e pela labuta, a existência daquela aura mista de alegria e cansaço que só os bailarinos da realidade conhecem tão bem? As imagens captadas por Naiara, nascidas da genuína relação de confiança estabelecida com suas personagens, quase exalam aromas, por pouco não oferecem sabores. "O Real em sua expressão infatigável", diria o Barthes. E teríamos todos de concordar.

 

Foi essa capacidade de capturar com fidelidade a natureza dos que fazem a história cotidiana acontecer que levou a Leal Moreira a convidar Naiara para traduzir em imagens um conceito: "Mãos que trabalham", que compõem a Agenda 2019 - que celebra os 33 anos de história da empresa com a campanha “Há 33 anos a Leal Moreira anda de mãos dadas com você”. Ainda em suas páginas está a história de Carlos Moreira (1937-2018), fundador da construtora, que ilustra o verso das fotografias do caderno. Ele, que assim como muitos dos retratados por Naiara, começou sua trajetória profissional no Porto do Sal, no bairro da Cidade Velha, fazendo as vezes de ajudante nos regatões que levavam suprimentos ao interior do estado.

 

"A narrativa proposta pelas fotos é essa: unir a ideia de construção e tempo, brincar com a ideia de mãos que trabalham, constroem", explica a fotógrafa.  São dez imagens. Uma dezena de closes em mãos jovens/idosas, brancas/negras, femininas/masculinas, todas elas ostentando símbolos da busca diária de pessoas comuns do Norte do país por sustento e sentido. Entre os modelos, claro, quatro selecionados entre os trabalhadores e andarilhos do Ver-o-Peso.A identificação com o complexo vem de muito antes do ingresso de Naiara no universo das Artes Visuais. Foi nas redondezas do Veropa que os avós maternos trocaram os primeiros carinhos. Era na feira que ela, menina nascida e criada em Ananindeua, vinha passear com os amigos quando começou a dar os primeiros passos rumo à independência emocional. E foi lá, afinal, que um evento prosaico definiu os rumos que a levaram aos caminhos que trilha desde então.

"Eu tinha uns 18 anos. Havia saído de uma cirurgia no pé esquerdo e passei de ônibus na frente do Ver-o-Peso. Como andava sempre com uma câmera digital daquelas bem baratinhas na bolsa, fiz a fotografia de uma mulher esperando na parada, de dentro do ônibus mesmo, e curti o enquadramento. Não tinha nada muito incrível naquela imagem, mas foi a primeira vez que olhei pra uma fotografia feita por mim e pensei: 'Égua, isso aqui tá bom'".

 

Leitora voraz que alimentou por anos o desejo de ser jornalista, Naiara virou a chave sem traumas ao descobrir que o curso de Comunicação Social oferecia um mísero semestre de estudos voltados para as técnicas de fotografia. "Pesquisei bastante e descobri que o curso de Artes Visuais na Unama oferecia um ano e meio de disciplinas de fotografia, estudo da imagem, foi aí que decidi o que ia fazer." O cavalo do destino estava selado.

 

Entre o começo e o término da faculdade, no entanto, foram muitas as idas e vindas na relação com o universo acadêmico, ao mesmo tempo em que a ligação com os registros de rua se aprofundou. "Eu já fotografava muito e achava que não tinha o menor jeito para a Licenciatura, que eu odiava." A reconciliação entre os dois mundos viria por meio da influência direta de uma professora, Janice Aguiar, responsável pela disciplina "Arte, Cultura e Sociedade". Foi ela, Naiara aponta, que uniu fios soltos entre teoria e vivência prática, oferecendo à fotógrafa um novo entendimento sobre o papel do ensino nas artes.

 

"A Janice falava muito de educação em espaços não formais. Foi nessa disciplina que aprimorei minha relação com Belém. Entendi muito das minhas rejeições e passei a ter outra visão, estudar mais as questões da cidade. Mudou tanto as minhas ideias que hoje em dia as abordagens que faço na fotografia são abordagens de sala de aula, e uso como suporte alguns pensadores da arte e da educação, como a Ana Mae Barbosa, no que faço. Atualmente inclusive gosto mais de ser identificada como educadora social do que fotógrafa".

 

De canudo na mão e tempo livre, Naiara decidiu passar uma temporada no Rio de Janeiro, onde estudou Direção Cinematográfica na Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Foram quase dois anos longe da capital paraense que a fizeram – estrangeira pela primeira vez – descobrir a própria negritude e aprofundar as reflexões sobre questões ligadas à Amazônia. De volta a Belém, um novo episódio no Ver-o-Peso, que passou a visitar com cada vez mais frequência, a fez repensar a atitude diante de sua produção fotográfica, que praticamente abandonou no período em que esteve no auto-exílio em terras cariocas.

 

"Fui assaltada pela primeira vez no Ver-o-Peso depois que voltei do Rio. Esse acontecimento me deu uma espécie de estalo: 'E se eu morresse nesse dia, o que ia deixar?' Passei a levar mais a sério minha produção e a fazer tudo com muito mais urgência. A primeira coisa que me propus como trabalho foi: e se aquele menino usasse minha máquina roubada, o que ele fotografaria? Refiz então um caminho imaginário de possíveis registros que ele produziria com minha máquina, passando por vários pontos do Ver-o-Peso, isso imediatamente após ter sido assaltada. O episódio não mudou de maneira nenhuma minha relação com o lugar".

 

De fato. Desde o retorno a Belém, Naiara vai pelo menos uma vez por semana visitar os amigos/personagens do local. Chega às três da manhã todas as quintas-feiras, passeia e joga conversa fora até as nove, toma café, compra frutas, fica sabendo das últimas e só depois inicia a rotina profissional como fotógrafa freelancer e monitora de oficinas em instituições públicas. "Nem sempre vou lá pra fotografar. São meus amigos que estão ali. Sabem se minha mãe foi internada, se eu viajei, quando voltei, essas coisas. Também sei muito sobre a vida deles, de todos. Não é uma relação fotógrafo/fotografado apenas. Bem distante disso".

 

Uma olhada no Instagram da fotógrafa, por fim, confirma a força desse elo. Das quase 400 imagens postadas desde outubro de 2015, a maioria absoluta é ambientada no Ver-o-Peso e arredores. As cores saturadas e os flagrantes de trabalhadores, andarilhos e malandros de toda sorte são possíveis, neste grau de intimidade, apenas a quem recebeu passe livre para compartilhar um espaço afetivo muito particular, entupido de idiossincrasias e códigos internos.

 

Longe, muito longe, de dizer que Naiara se resuma ao Veropa - seu trabalho mais recente com comunidades do bairro da Terra Firme e sua produção independente como fotógrafa documental renderiam por si a realização de um novo perfil. Mas é fato que a experiência vivida desde os tempos da adolescência com essa gama tão rica de personagens/situações num tempo-espaço definido da capital paraense, incutiram na fotógrafa um posicionamento bem definido diante da existência, do mundo. Naiara Jinknss, a afro-indígena, tem lado. Não é difícil advinhar qual é.

 

 

BATE-BOLA RAPIDOLA

Primeira câmerA

Ganhei aos onze anos, uma Yashica de filme. Minha avó pediu pra que eu escolhesse. Tenho até hoje a foto que fiz nesse dia, 18 de junho, dois dias depois do meu aniversário. Mas eu só fazia fotos dos outros. Minha vó, minha mãe reclamavam: "A gente compra filme pra essa menina ficar fazendo um monte de foto dos outros (risos)".

 

Influência na Literatura

Na adolescência era mais fácil me ver escrevendo do que fotografando. Em algum momento eu percebi depois que dava pra relacionar as coisas e hoje eu uso muito a literatura na construção das minhas imagens. Meus favoritos: Clarice Lispector, Caio Fernando Abreu, Nelson Rodrigues e Anais Nin. De pensadores sociais, gosto da Djamila Ribeiro, dos autores da coleção Feminismos Plurais, do Drauzio Varela, Bauman, Judith Butler.

 

 

Influência na fotografia

Gosto muito do João Roberto Ripper. Uma vez mandei um e-mail pra ele, que respondeu pedindo meu endereço. Quando vi, chegaram todos os livros dele pelo correio! De mulheres fotógrafas, curto muito Nair Benedicto, Wânia Corredo, Vivian Maier, Isis Medeiros, Hellen Salomão e o Coletivo Mamana. Também gosto muito do trabalho do João Wainer. 

 

 

CONFIRA: Https://www.instagram.com/nayjinknss/


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