Texto: Fernando Gurjão Sampaio
Ilustração: Felipe Moia
Desde que ela ganhou um kit médico, com estetoscópio, termômetro, injeção e outras filigranas, desses vendidos a rodo no Comércio, passei a ser usuário contumaz de serviço médico extremamente bizarro. Contudo, antes de narrar as estranhezas, peço que considerem o fato de que a profissional só tem 3 anos de idade.
Doutora Íris, ela se chama. Do nada ela aparece com o jaleco branco e chapeuzinho com a cruz vermelha, qualquer hora do dia, em qualquer situação, decretando: “papai, você tá doente.”
Ainda penso em argumentar, o riso segurado entre os dentes, mas sei que nada vai dissuadir a pequena ditadora.
– Estou doente não, filha.
- Tá doente sim, papai. Deita aqui – e, quando percebo, já estou no chão sendo examinado de forma totalmente displicente - você tá com dorzinha de barriga - decreta a médica enquanto abre minha boca para examinar meus dentes com uma lanterninha, como se barriga tivesse relação com dentição.
- Não estou doente! – resmungo, quase sem poder falar, mas não adianta.
- Tá sim – ela decreta.
Quando dou por mim, ela já me largou de canto e foi examinar uma boneca, me deixando abandonado nos corredores do hospital imaginário.
Não recomendo tais serviços em qualquer caso, ouçam-me bem!
A médica decide as doenças sem escutar as queixas do doente, troca os exames, faz verificações clínicas descabidas e tem uma estranha fixação por examinar a boca do pai. A piorar, todo mundo sofre de dorzinha de barriga neste mundo imaginário.
Outro dia aconteceu um absurdo: no meio do exame clínico a médica me abandonou e foi auscultar outro paciente que nem mesmo precisava de auxílio médico. Dra. Íris consegue ir além: em algumas ocasiões ela engaveta o diploma médico e passa a usar diploma de médica veterinária. Mal vi, sai correndo atrás do gato – pobre gato – que sofre da mesma dorzinha de barriga que acomete a todos. Enquanto o gato corre, há um pai deitado no chão, ladeado por cinco bonecas que, aparentemente, não se importam com o péssimo tratamento recebido.
A situação fica mais escabrosa quando, no meio dos procedimentos, Dra. Íris, desiste de tudo e joga promissora carreira para o ar.
Ela decreta:
- Agora você é o médico, papai.
- Não, filha, papai não quer ser o médico.
- Papai, você é o médico sim!! – as mãos em riste, pequena mandona que nem vale a pena contradizer.
Aí me vejo médico, o minúsculo jaleco amarrado no pescoço, o chapeuzinho que não passa nem no nariz, mais parecido um sheik árabe.
- Bom dia, paciente! O que a senhora tem?
- Tenho dorzinha na barriga.
- Faz quanto tempo que a senhora sente essa dor?
- Sete anos.
Pausa na brincadeira para uma pequena lição de matemática.
- Filha, você só tem três anos, não pode ter dorzinha de barriga faz sete anos...
- Ah, é?
- Diz que sente a dor desde ontem.
- Tá bom.
Recomeça a cena.
- Faz quanto tempo que a senhora sente essa dor?
- Sete anos – diz ela, fazendo dois com os dedos e rindo da minha pretensa cara de brabo.
Aí nós nos abraçamos e entramos no modo cosquinha - que sempre encerra nossas brincadeiras – e a risada dela se torna a perfeita cura de todos os males da alma e do corpo que possam afligir um pai. Deitado no chão, observando a imaginação da filha que cria o mundo, existe a mais nítida noção da perfeição da vida.