POR DENTRO DA LEAL MOREIRA

A Marvada Carne

Não lembro quando o menino chegou, surgido do nada, já oficialmente nomeado Tatu. Gago, ele pedia grade no três-três que fazíamos todo final de tarde no campinho improvisado na rua larga de nossa casa, em Mosqueiro.

Nesse dia, como em todos os outros, minha avó chegou da cozinha e pousou nosso lanche na beira da sacada: pãezinhos quentes com manteiga farta, café com leite bem doce, para manter as crianças em pé. Talvez porque fôssemos novos, talvez porque sentir fome fosse realidade tão distante de nós, não reparamos no olhar vidrado do menino Tatu, que passou a perder lances fáceis de tanto que encarava a comida.

Vovó sempre ofereceu lanche a todas as crianças que nos circundavam, quantas fossem. No intervalo, lavamos as mãos e então Tatu, sem um pingo de vergonha, se jogou por cima do prato pegando seu quinhão, bebendo café com leite a quase se afogar.

Minha avó, conhecedora das dificuldades da vida, pôs-se a prosear com o esfomeado. Perguntou onde morava, onde estavam os pais, quantos anos tinha e se estudava, a tudo respondido com mo-moro ali, mi-minha mãe tá-tá no mato, tenho ter-treze anos, não se-sei ler. Disse ainda que tinha sete irmãos mais novos, todos bacurizinhos cabeçudos e barrigudos, meninos que se perdiam livremente pelas ruas e matos da ilha, igual bichos. No fim do lanche, enquanto fazíamos a digestão e pensávamos na vida, vovó fez uma marmita com sanduíches e pediu que Tatu levasse aos irmãos – e, mal minha avó falou, Tatu sumiu pela rua correndo destrambelhado, segurando riqueza nas mãos.

Sempre que voltávamos à ilha, Tatu logo aparecia para cumprimentar, para brincar e receber bondades da vovó. Ainda mais depois dela ouvir os meninos tirando sarro dele, porque Tatu quase nunca comia carne, nunca teve dinheiro para isso, e um dia o flagraram parado na barraca de churrasco que havia na Dezesseis, bem ao lado da churrasqueira cheirando toda a fumaça das carnes. Tatu cheirava a fumaça e metia uma colherada de farofa na boca, cheirava fumaça e comia, e quando perguntaram o que era aquilo, respondeu é que assim pa-parece que to co-comendo ca-carne.

Durante anos, até estarmos taludos, Tatu rodeava nossa casa onde recebia sorrisos e era gente. Quando demorávamos a voltar, encontrávamos Tatu magro, as costelas marcando a pele. Quando íamos com mais frequência, lá estava Tatu gordinho e forte, sorridente e feliz. Virou companheiro com quem íamos à praia pegar jacarés – e até se apaixonou pela Lucinha, prima minha que passava o dia lendo na rede enquanto Tatu, enamorado, suspirava no muro admirando a musa que nem percebia tanto amor.

Quando minha avó morreu a casa se fechou. Sumiu a avó da varanda, segurando o lanche de tantos, sorridente, vendo seus moleques felizes. As idas à ilha rarearam. Vendemos a casa da nossa infância como derradeira despedida. Com isso, também sumiram os tantos moleques que rondavam ali, buscando alegria.

Certo dia, guiado pela saudade, passei de carro pelas redondezas e encontrei a velha casa toda aberta, as janelas pedindo sol, as redes na varanda como se ainda fosse Lucinha lendo, as cadeiras de embalo ainda balançantes, como se o dono tivesse acabado de sair para pegar café na cozinha. A casa das tantas felicidades ainda está lá, gerindo novas memórias em outros moleques que também jogam bola no campinho mal engendrado na nossa rua larga.

Acabei encontrando nossa antiga caseira e, entre abraços e afagos, perguntei dos meninos. Um a um, fui sabendo de alegrias e tristezas. Do Tatu, soube que continua o esfomeado de sempre, ainda atarracado e sem pescoço, mas que agora não precisa mais cheirar fumaça de churrasco para ter o sonho da carne. Tatu batalhou, juntou dinheiro dos bicos de pedreiro e abriu um trailer de lanches. Agora vende seus próprios churrasquinhos, dando-se prejuízos constantes nos inúmeros espetos que rouba da grelha para satisfazer sua mágoa de infância faminta.

Um dia, quem sabe ainda passo por lá para abraçar meu amigo Tatu, para dividirmos a Marvada Carne e rir dos moleques felizes que fomos, apesar de tudo, no campinho da rua larga e nos jacarés sumidos nas areias grossas do Farol.


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