POR DENTRO DA LEAL MOREIRA

Uma Reverência ao passado

texto: Anna Carla Ribeiro

fotos: Divulgação

 

Os ladrilhos hidráulicos voltam com força ao resgatar o bom gosto com a utilidade exigida pelos novos tempos

 


Não é à toa que os versos da cantiga "Se essa rua fosse minha, eu mandava ladrilhar" se refere a uma verdadeira prova de amor. Antigamente, embelezar residências, logradouros e prédios com ladrilhos hidráulicos era sinônimo do mais alto grau de requinte. Secular, a técnica é facilmente apreciada em palácios e casarões que abrigam os principais tesouros arquitetônicos do Brasil. Agora, os ladrilhos apareceram novamente. Invadiram fachadas, quartos, banheiros, calçadas, jardins. Estão nos mais impensáveis lugares. Ressurgiram com diferentes roupagens, porém, eternamente charmosos e clássicos. A recente febre deste material, que passou por décadas de esquecimento, parece renascer com a mesma força que o fez ganhar o mundo no século retrasado.

Quem passa pelos principais prédios históricos do Brasil a ver centenas de ladrilhos milimetricamente desenhados não imagina que a técnica surgiu de reinos muito, muito distantes. Está longe de ser de autoria lusitana, nossa principal influência do Velho Mundo. Veio de artesãos árabes, no século XIX, e conquistou a Europa e as suas colônias nas Américas com a mesma eficácia que o Império Britânico adquiriu, no período, a supremacia mundial.

Pode-se dizer que os ladrilhos hidráulicos pegaram carona nas ondas cristalinas do Mediterrâneo para chegar na Europa. Afinal, foi naquela região, banhada por um mar azul-piscina, que países como França, Espanha, Portugal e Itália tiveram o primeiro contato com o produto, uma novidade exótica, oriunda dos mosaicos bizantinos. Registros históricos mostram que o ladrilho hidráulico foi apresentado com sucesso na Exposição Universal de 1867, em Paris, lançado como uma alternativa para a pedra (principalmente o mármore), mas que não precisava de cozimento em seu processo. Logo os ladrilhos hidráulicos viraram moda e passaram a ser ostentados nos mais distintos centros urbanos europeus: desde os grandes palácios na Rússia dos Czares, passando pelas mansões da Riviera Francesa, na Barcelona de Antoni Gaudí, até as mansões góticas de Veneza.

No Brasil, por influência de Portugal, os ladrilhos foram introduzidos e popularizados na arquitetura das residências entre os anos 1910 e 1930. "Não importava a classe, toda a cidade antiga era ladrilhada", contou o arquiteto Rudelger Leitzke, um verdadeiro apaixonado pela arte de se fazer ladrilhos. Ele se referiu à sua cidade, Pelotas, no Rio Grande do Sul, um lugar marcado pela técnica com a mesma força das toneladas necessárias para prensar um ladrilho.

Pelotas, no início do século XX, vivia um período de apogeu econômico por conta de um contraste de sabores: a cidade exportava grande quantidade de charque e, concomitante, havia amplo envolvimento da população no manejo do açúcar, que desenvolvia os até hoje tradicionais doces pelotenses portugueses. "Nesse período, 17 fábricas de ladrilhos foram instaladas em Pelotas, para atender à demanda arquitetônica da região.

Porém, alguns séculos depois, uma a uma foi fechando as portas, por conta do declínio nas vendas. Afinal, a indústria cerâmica, que tinha como matéria-prima o barro, dominou o mercado, já que era muito mais acessível que o ladrilho para a população", explicou. 

Em 1983, Rudelger já atuava como arquiteto e constantemente usava os ladrilhos em suas plantas. Ao fazer um pedido na única fábrica sobrevivente de Pelotas, a Fábrica de Mosaicos, fundada em 1914, ele soube que a sua encomenda seria a última realizada pelo estabelecimento. "A fábrica ia fechar. Eu fiquei profundamente tocado com aquela notícia e decidi comprá-la. Aos poucos, fui aprendendo o processo, que é totalmente artesanal. Na época, eu tinha os cabelos longos, que viviam brancos por causa do trabalho na fábrica", confessou.

História semelhante ocorreu em São Paulo, com a fábrica Ornatos Nossa Senhora da Penha, considerada a mais antiga em funcionamento na capital paulista. "Fui convidado pelo meu sogro, que sempre gostou muito de cultura, a tentar recuperar a antiga fábrica de ladrilhos, que surgiu em meados de 1920, no Bairro da Penha. Precisei estudar muito para conhecer o processo artesanal e fiz excessivas pesquisas em diversas cidades do mundo. Voltei ao Brasil em 1984 com essa missão e nunca mais parei. Com o mercado em baixa, saía pela cidade para tentar vender os ladrilhos. Passei dez anos levando porta na cara. Fazia pouquíssimos trabalhos, geralmente em calçadas e com ladrilhos simples, que não exigiam muita técnica", ressaltou Zilton Michiles, um dos sócios da Ornatos.

 A volta por cima

Lidar com ladrilhos pode lembrar brincadeira de criança. Quando quatro peças se juntam, formam lindos desenhos florais ou geométricos. Seis ou mais peças, unidas, têm o poder de se transformar em um refinado mosaico. Colocados apenas no contorno de um corredor, remetem a um tapete. Hoje, eles voltaram a invadir não só paredes e pisos, mas móveis, objetos de decoração e até roupas. Em 2015, o designer Mauricio Arruda assinou coleção para a Tok&Stok motivado pelas suas memórias de infância. Dentre as peças, há louças e pratos pintados à mão com leitura de ladrilhos nas laterais. Também no ano passado, a Dolce & Gabanna lançou a sua coleção de inverno inspirada nos ladrilhos em vestuários e acessórios. Nos últimos tempos, arquitetos e designers de renome internacional como a italiana Paola Navone e a espanhola Patricia Urquiola passaram a desenhar ladrilhos.

Tanto sucesso repercutiu na mais inovadora forma de comunicação da atualidade: as redes sociais. Criada em 2013, a página do Facebook "Chão que eu piso", que também possui Instagram com o mesmo nome, atraiu milhares de seguidores de todo o mundo. O conteúdo? Diversos registros de chãos de ladrilhos espalhados pelo Brasil e pelos mais distintos países, como México, França, Israel e Japão. O projeto deu tão certo que as autoras, as mineiras Paola Carvalho e Raíssa Pena, já lançaram uma loja virtual de objetos com estampas de ladrilhos, como cadernetas, estojos, sacolas, quadros, entre outros mimos. Recentemente, o projeto lançou uma campanha de financiamento coletivo para lançar o livro "Casa e Chão – Arquitetura e Histórias de Belo Horizonte", que reunirá 120 páginas contando a história arquitetônica da capital de Minas Gerais. Mais de 350 pessoas abraçaram a causa e em breve a obra será lançada. Com a ideia de mostrar a beleza de caminhar por diferentes lugares, o instagram @umpenomeucaminho também dá um destaque especial aos ladrilhos e já atraiu, desde 2014, mais de mil seguidores. Mais uma prova de que os ladrilhos sobreviveram à modernidade.   

Os antigos mestres na técnica diziam que para se fazer ladrilhos, era preciso ter a força de um sansão e a sensibilidade de um artista. Eles não estavam exagerando. Primeiro, é necessário ter a delicadeza de preencher, sem borrar, com tinta, cada parte do molde de bronze. Depois, é preciso fazer a prensa – algo em torno de 40 toneladas – para que o ladrilho seja comprimido.“Nos séculos passados, essa prensa era feita no braço, com a ajuda de um equipamento manual. O prenseiro era como um mágico, que fazia o ladrilho ficar pronto com a sua própria força.

O que mudou é que atualmente a prensa hidráulica é feita através de maquinário. Basta apertar um botão. Porém, o resto do processo é o mesmo. Cada ladrilho continua sendo feito individualmente, com os mesmos cuidados na hora de aplicar a tinta no molde”, explicou Rudelger Leitzke.

A sua fabricação artesanal, considerada uma arte, foi o que despertou no mercado atual a necessidade de resgatar o ladrilho. A própria indústria de porcelanato já se rendeu aos seus encantos. "A indústria imita os ladrilhos até mesmo nas suas imperfeições. Quem conhece sabe que cada ladrilho possui uma imperfeição própria, natural do processo artesanal. Esse é um dos charmes do ladrilho. É possível encontrar o porcelanato imitando os ladrilhos também nessas falhas. Os erros são feitos propositalmente, só que são sempre os mesmos em todos os ladrilhos", destacou o dono da Fábrica de Mosaicos.

Depois da maré baixa, Zilton Michiles pôde comemorar o retorno da valorização dos seus produtos. “Já nos anos 90 pude produzir ladrilhos para o meio artístico do Brasil. Os artistas foram essenciais para a volta da apreciação dos ladrilhos pela sociedade. Tive a oportunidade de entregar encomendas para celebridades como Tom Jobim, Caetano Veloso, Gilberto Gil e diversos diretores e atores de televisão”, afirmou. 

A necessidade de reforma de antigos casarões e prédios históricos no Brasil também começou a movimentar o mercado de ladrilhos. Zilton participou da restauração de cartões-postais do país, como o Teatro Municipal de São Paulo e o Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro. Além disso, a fábrica ajudou a restaurar ladrilhos de grandes símbolos da Belém da Belle Époque: o Theatro da Paz, em 2001, o palacete Pinho, em 2004 e o antigo Instituto palácio Lauro Sodré, em 2006. “Depois do Rio de Janeiro, Belém é a cidade que mais demandou trabalhos importantes de restauro na nossa fábrica. O palacete Pinho foi a produção mais árdua que já fizemos. Foram quatro anos reproduzindo 12 padrões diferentes de ladrilhos. É o prédio histórico que mais tem modelos de peças nossas”, revelou Zilton.

Ao longo dos anos, ele pôde perceber uma mudança no perfil dos seus clientes. “Quando comecei a minha carreira na fábrica, as pessoas que compravam ladrilhos eram mais velhas, saudosistas, que queriam decorar as suas casas de campo, as suas fazendas. Hoje, o principal comprador de ladrilhos é o jovem, que está começando a vida e quer decorar a sua primeira residência com estilo. Os empreendedores recém-adultos também fazem parte desta clientela. Eles buscam decorar seus restaurantes, lojas e demais estabelecimentos com um diferencial”, conclui.

 

Dicas e cuidados

 

• Os ladrilhos hidráulicos são coringas para a decoração, porém, é preciso manter o bom senso. Segundo a arquiteta Liliane Ferri, é necessário um planejamento na hora de escolher o ladrilho ideal. “Os ladrilhos podem decorar qualquer lugar, desde que se adequem ao projeto arquitetônico executado. É preciso que haja uma harmonia entre os desenhos, as tonalidades e os demais objetos do ambiente”. A manutenção dos ladrilhos também precisa ser levada em consideração. “Os ladrilhos requerem cuidados frequentes. A limpeza deste material deve ser feita apenas com um pano úmido, evitando produtos abrasíveis, pois podem danificá-lo”, ressaltou.

 

• Para evitar frequentes manutenções, pode-se optar por aplicar os ladrilhos hidráulicos nas paredes, ao invés de utilizá-los como piso. “No chão de uma cozinha, por exemplo, os ladrilhos podem exigir maiores cuidados, por ser um ambiente onde se manipula os alimentos. Como decoração para paredes de jardins de inverno ou lavabos, a limpeza é mais simples”, destacou. Basta levar em consideração a praticidade e a harmonia do ambiente. “Não existe regra específica. A criatividade pode correr solta na hora de utilizar os ladrilhos. Inclusive, pode-se brincar com diversos desenhos, modelos e cores diferentes, criando uma espécie de patchwork de ladrilhos”, explicou a arquiteta.


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